segunda-feira, 28 de março de 2011

REFLEXÕES SOBRE O "SUICÍDIO E A ALMA " DE HILLMAN E O PAPEL DO ANALISTA.





Falar sobre morte já causa repulsa na maioria das pessoas, elas se esquivam fazem o sinal da cruz e batem na madeira. Segundo Sartre “a melhor pessoa para compreender a morte é a pessoa que está morta, por isso o suicídio é incompreensível, quem poderia falar não pode mais”. Mas e quando o assunto é suicídio? Esse é um tema “tabu”. Seja na televisão, na igreja, em casa ou em qualquer lugar. Ninguém quer falar sobre isso. Mas por quê? De certa forma isso fere algo na nossa estrutura mais primal: o instinto de auto preservação, manutenção da vida. Como se não pudessemos olhar diretamente para esse domínio oculto, ele em geral esta na sombra, e é um tema que por natureza sempre será difícil de ser apreendido. Ele é perigoso, desordenado e eternamente oculto, como se a luz da consciência pudesse roubar-lhe a vida.





A sociologia defende a preservação da sociedade e tem em suas tristes estatísticas a constatação da desintegração dos laços sociais, o Direito o enxerga como um crime hediondo e a Igreja nos ordena a viver. Já para os platônicos a filosofia é o ensaio da morte, a vida e a morte nascem juntas. Não podemos deixar de encarar a verdade: a morte e o único absoluto da vida, a única certeza e verdade. O único a priori humano. Para Camus o suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia.





Para Jung as idéias de morte têm significados diversos nos sonhos e nas fantasias para a psique nem é imortalidade de um fato nem é a morte um fim. A psique funciona em correspondência com a realidade objetiva. Hillman nos ensina que é preciso encarar o suicídio não apenas como uma saída da vida, mas como uma entrada na morte. O que a alma busca através das tentativas suicidas é dar novo significado à vida.


O objetivo da terapia junguiana é oportunizar uma forma de viver nosso mundo simbólico com alguém que possa iluminá-lo de uma maneira nova e diferente, fazendo conexões no espaço e no tempo. A pessoa traz para análise os sofrimentos da alma e os significados descobertos são expressões de uma realidade viva que não pode ser compreendida pela metáfora básica da Alma. Mas como o terapeuta deve lidar com isso? Segundo Hillman (1992) a questão para o analista não é saber se somos pró ou contra o suicídio, mas o que ele significa na psique. Será que o paciente conhece seu próprio mito?Nessa proposta clínica, busca-se relativizar, reinventar, desconstruir as certezas egóicas que por vezes se colocam reativas ao contato com elementos novos que pedem lugar. Tal proposição se justifica pela noção apresentada inicialmente por Jung, de que o eu seria uma criação ficcional, um complexo entre outros, que precisa de um campo de expressão na personalidade, porém além dele, há outros complexos que permanecem reprimidos ou simplesmente abaixo do nível da consciência.




Na analise desloca-se interiormente da historia de caso para a história de alma explorando os seus complexos mais por seus significados arquetípicos do que por sua historia traumática. A historia de alma é recapturada, separando-o de seus obscurecimentos pela historia de caso. Parece controverso, mas ela emerge a medida que abandonamos a historia de caso. (HILLMAN, 1992)



Hillman diz que a personalidade é um drama cheio de gente, onde nem sempre o Ego desempenha o papel de diretor. Pensar a prática clínica como aquele lugar onde deve sair a pessoa do analista e a pessoa do paciente, para que a análise possa acontecer. Às vezes, irrompem na sala as enormes figuras das tragédias. E todas elas serão figuras míticas. Segundo Jung: "Os deuses se converteram em enfermidades", quer dizer, a alma se manifesta à consciência através do patologizar. A psique está referida a um outro mundo, um sub-mundo, um destino ligado ao mundo dos mortos. Para encontrá-los basta olharmos para os complexos, reconhecendo neles o poder arquetípico dos mesmos. Somente uma parte deles pertence à esfera pessoal; a outra são os deuses que “forçam”, sintomaticamente, o ingresso à consciência. A psicologia Arquetípica se assenta sobre a imagem da depressão, a grande patologia contemporânea. Profundidade é como falamos cotidianamente desta depressão. Não se trata de curar a depressão, mas curar na depressão. Depressão no sentido geográfico, ou vale como diria Hillman. Além do diagnóstico, estilo de inconsciência. Melancolia e criatividade estão conectadas pelo menos desde Galeno. No vale da alma estão os potenciais criativos que nos possibilitam viver. No sentido intensivo da palavra. Para isso é preciso vivenciar a alma conforme seus significados, imagens emoções - o seu sentido. Enquanto o analista for fiel a psique, contudo ele não será leigo, ele tem seus fundamentos e neles há um lugar para a morte. O suicídio é uma tentativa de mudar de uma esfera para outra força através da morte. A morte aparece a fim de dar lugar à transformação. A morte vem primeiro como uma experiência da alma e depois a qual o corpo expira. Quanto mais imanente for a experiência da morte tanto maior será a possibilidade de transformação. (HILLMAN, 1992) As fantasias suicidas oferecem um encontro com a realidade. A depressão restringe e nos concentra no essencial e o suicídio é a negação final da existência em favor da essência as mutilações suicidas são distorções extremas desta forma de experiência da morte, o desejo corporal precisa morrer. O suicídio é então, o anseio por uma transformação rápida. O indivíduo quer morrer imediatamente porque já perdeu sua crise de morte antes. (HILLMAN, 1992) Quando empreendemos uma tarefa profissional, entramos em um papel arquetípico. O analista precisa descobrir sua posição, sua atitude de forma consciente e aberta, podendo assim modelar o vaso de sua vocação. Preocupar-se com a saúde da alma e não somente do corpo. Através da transferência deve confrontar-se com sua própria morte. Ele entra no papel de “arbitro do destino”, e, por isso, é imprescindível que haja uma forte aliança, para que seja possível compartilhar um mistério comum. Este é o símbolo vivo do processo de cura e expressa Eros mutante e envolvente da análise. (HILLMAN, 1992) Somos dignos de julgar o suicídio quando estamos tão cegos e surdos à nossa própria alma, que não fazemos idéia do que busca aquele que aborta a própria existência? O analista jamais deve tomar uma atitude de prevenção ele deve acompanhar a experiência tal como ela é, pois assim pode-se perder a alma. Toda vez que o tratamento negligencia diretamente a experiência, enquanto tal, e apressa-se em reduzi-la ou superá-la, algo está sendo feito contra a alma: por que a experiência é o alimento próprio e único da alma. (HILLMAN, 1992) O analista deve capturar as emoções, fantasias e imagens entrando no jogo e sonhando junto com o paciente. Conhecer uma historia de alma significa tornar-se parte do destino do outro. Apreender uma historia de alma requer insight intuitivo. O analista deve estar conectado, mas não em demasia senão os dois tornam-se inconscientes - um pé dentro e outro fora. (HILLMAN, 1992) Em suma o suicídio é uma tentativa de mudar de uma esfera para outra força através da morte. A crise suicida é uma maneira de experimentar a morte, e deve ser considerada necessária a vida da alma. (HILLMAN, 1992) Um novo começo que se inicia com a morte, e que marca o caminho para a vida, a individuação, em paralelo com o nascimento de um novo mundo. Araiê

Referências Bibliográficas:


HILLMAN, J. Suicídio e Alma. Petrópolis: Vozes, 1993.


GRANATO, L. A vida da Alma no mundo dos mortos: Mito e Metapsicologia em James Hillman Disponível no site: http://www.himma.psc.br/artigos/artigo_04_2k8.htm na data de 28/03/11.

quinta-feira, 24 de março de 2011

A BARBA NEM É TÃO AZUL ASSIM: UMA EXPERIÊNCIA NA DELEGACIA DA MULHER




Segunda feira, 08h30 da manhã e já se vê na Delegacia da Mulher de Curitiba algumas mulheres sentadas, desoladas, sorumbáticas. Outras, verborrágicas, ansiosas andam de um lado para o outro. Muitas crianças gritam no recinto. Ao mesmo tempo em que proferem sua dor há um silêncio, a mancha da violência marcando mães e filhos.
O relacionamento sonhado, idealizado, veio parar na Delegacia. O Príncipe encantado vira fera e torna-se o algoz.
Após a queima de sutiãs, o movimento feminista e a intensa informação sobre a violência contra a mulher, principalmente com o advento da Lei Maria da Penha, ainda vivemos uma época em que existem mulheres dependentes e submissas aos seus companheiros. Claro, não se pode ter a ilusão de que algo instituído há milênios iria cessar em algumas décadas de avanço. Às vezes parece algo da própria natureza do feminino que ainda se opõe à visão da mulher moderna. A posição da mulher dentro de uma família tradicionalmente é a de conservar e cuidar. Então, como ela agora deveria se revoltar e num gesto drástico entregar o marido à polícia?
A sociedade, apesar de impulsionar a mulher para o mercado de trabalho, às universidades e aos cargos de alto escalão ainda mantém a mulher atrelada ao modelo tradicional - ela deve ser “boazinha” e conservar os olhos fechados. Até pouco tempo o homem detinha total propriedade sobre a mulher. O casamento tradicional na Igreja Católica é um rito patriarcal. O pai, proprietário e guardião da pureza da filha, a entrega formalmente a outro homem que lhe dá seu nome.
A mulher, no papel de ingênua, deve sempre ter um herói ao lado pronto para salvá-la. Não é assim que acontece nos filmes de ação? Apesar da intuição e do instinto de preservação inatos as mulheres se envolvem em relacionamentos potencialmente perigosos; o fio de Ariadne torna-se um novelo de lã emaranhado e ela não enxerga a saída do labirinto. Heróis de um cenário cor-de-rosa transformam o sonho em pesadelo personificando então o homem sinistro, de amante a predador.


A junguiana Clarissa Pinkola Estés com livro Mulheres que Correm com os Lobos(1992) busca o resgate do lado instintivo da mulher expondo a psique feminina de forma arquetípica por meio de antigos contos. Ela inicia com a famosa história do Barba Azul, de Charles Perrault, que conta sobre um rico e temido aristocrata, dono de uma assustadora barba que de tão negra chegava a azular. Como um conto do século XVII pode ainda ser perfeitamente aplicado nos dias atuais? O homem sinistro nos sonhos das mulheres é inato e pode se materializar no papel de maridos, namorados e conviventes. “O Barba Azul simboliza um complexo profundamente recluso que fica espreitando as margens da vida da mulher, observando, à espera de uma oportunidade para atacar” (ESTES, 1992).



Pergunta-se às mulheres atendidas na delegacia: Vocês sabiam quem era este homem antes de entregar-se a ele? A maioria esmagadora diz sim. No conto a esposa do Barba Azul é a irmã mais nova, símbolo da ingenuidade feminina, ”essa aceitação do casamento com o monstro é na realidade decidida quando as meninas são muito novas, elas são ensinadas a não enxergar e, em vez disso, a "dourar" todo tipo de esquisitice, quer seja agradável quer não.” (ESTES, 1992).
Ela inicialmente não gosta do Barba Azul e fareja o perigo mas é seduzida pelos seus encantos e diz às irmãs mais velhas: "Bem, até que a barba dele não é tão azul assim" e ignorando sua intuição deixa que ele a despose. A maioria das mulheres, como já foi dito, sabe da natureza terrível de seus companheiros, mas se mantém cegas e na esperança de que “um dia ele vai mudar”.


Um dia Barba Azul resolve viajar e avisa sua esposa. Oferece todos os luxos de seu castelo e todas as suas chaves, desde que ela se mantenha obediente: havia uma pequena chave de acesso a um dos quartos que ela jamais poderia usar. A ilusão da liberdade. Segundo Estes (1992) “proibir uma mulher de usar a chave que leva à consciência é o mesmo que lhe arrancar a Mulher Selvagem, seu instinto natural de curiosidade e sua descoberta do que se esconde por baixo.”
Ela deseja conhecer a verdadeira natureza deste homem. Trazer luz a este quarto escuro e desconhecido de sua consciência. Afinal, o que está por trás da porta?



Apesar das mulheres saberem exatamente quem são seus companheiros neste momento ainda estão cegas pela ingenuidade ou por haver soterrado sua intuição. Mas há algo dentro delas gritando: a necessidade de farejar. Isso significa lançar mão de suas capacidades e usar a chave. Era nesse verdadeiro quarto dos horrores que Barba Azul escondia os cadáveres esquartejados das sucessivas mulheres com quem se casara, mas que invariavelmente assassinara. Ela desvela esse homem “e descobre a horrenda carnificina em algum ponto da sua vida profunda”. Essa descoberta suscita na mulher duas reações diferentes: o medo de ir embora e o medo de ficar. Quando elas desvelam a natureza terrível de seus companheiros tentam por diversas vezes negar o fato, mas sua energia vital continua se esvaindo e isso pode facilmente levá-las a morte. No momento em que a esposa do Barba Azul abre a porta do quarto secreto e encontra os cadáveres das antigas esposas, no susto acaba derrubando a chave.



E essa chave, esse minúsculo símbolo da vida, de repente não pára de sangrar, não pára de soltar o grito de que há algo de errado. Uma mulher pode tentar se esconder para não ver as devastações da sua vida, mas o sangramento, a perda da energia da vida, continuará até que ela reconheça a real natureza do predador e o domine (ESTES, 1992).
As mulheres tentam “apagar”, “limpar” esse conhecimento, mas depois de aberta a porta não é possível retornar. Não se pode mais apagar a luz, ela deixou de ser ingênua. Ela já conhece o caráter terrível do homem e o seu poder destrutivo e, por mais que tente retornar a cegueira e à esperança que um dia ele irá mudar, há algo aceso dentro dela que não se apaga facilmente. Ela dever agir em prol de sua própria vida. Muitas mulheres neste momento se encontram desvitalizadas e com uma nítida sensação de que não há saída, estão presas dentro de si mesmas, hipnose. Elas se acostumam com o terror diário de sua relação. Este perfil do “agressor” é muito marcado. São homens em geral possessivos, ciumentos e controladores. Usam a força física para diferenciar o homem (forte) da mulher (frágil). A coerção e o jogo de poder estão muito presentes e muitas mulheres com seu instinto de conservar e cuidar da família acabam se mantendo atrelada a estes homens.
A personagem do noivo animal é um marco na psique, representando algo perverso disfarçado como algo benévolo. Essa caracterização ou algo dela aproximado está sempre presente quando uma mulher nutre pressentimentos ingênuos acerca de alguma coisa ou de alguém. Quando uma mulher tenta ignorar os fatos das suas próprias devastações, seus sonhos noturnos gritarão avisos para ela, avisos e exortações para acordar! Pedir ajuda! Fugir! Ou dar o golpe final! (ESTES, 1992)
A tendência das mulheres de tentar “limpar a chave” e esconder a descoberta terrível de si mesmas é muito relevante dentro da realidade da Delegacia da Mulher. Fazem o Boletim de Ocorrência e depois se arrependem, voltam atrás na decisão de abrir o Inquérito Policial contra seus companheiros. Tentam desesperadamente apagar aquele fato, mas “agora o self ingênuo tem conhecimento de uma força assassina solta dentro da psique. Trata-se, porém, de algo muito mais sério, pois o sangue representa o extermínio dos aspectos mais profundos e íntimos da vida criativa e da alma. Ele não mancha só a chave; ele escorre pela persona inteira” (ESTES, 1992).
A culpa é tão estarrecedora e profunda. Ela devia ter obedecido. Agora a situação estava fora de controle. A mulher agredida se acusa de ser a principal responsável pela agressão que está sofrendo, e dessa forma, consegue incutir em seu psicológico uma culpa muito grande. “Na maioria dos casos, a mulher sente que, se apenas se mantiver fiel ao velho modelo um pouco mais, ora, sem dúvida a sensação paradisíaca que procura aparecerá no próximo batimento do seu coração” (ESTES 1992).


Quando a mulher percebe que caiu numa armadilha e que não poderá voltar atrás ela mal consegue tolerar a situação. Ela inclusive se culpa pela descoberta feita e sabe que feriu a um preceito básico: ela deveria ser obediente e boazinha e por isso merece sofrer, ou no caso do Conto de Perrault, morrer. Depois de superar diversos medos internos e externos a mulher que consegue chegar até uma delegacia supera mais uma barreira: o silêncio, o medo de falar sobre a violência e dificuldade de admitir o fracasso no sonho cor-de-rosa idealizado.
Quando Barba Azul retorna da viagem e percebe que a esposa violou seu quarto secreto decreta que ela deve morrer.



A esposa, já estratégica, pede um tempo para rezar e ele permite. Ali ela convoca seu feminino selvagem, instintivo e sem amarras. Um momento de reflexão para digerir e pensar em como agir. Este tempo estratégico é utilizado pelo setor de psicologia dentro da Delegacia: após o boletim de ocorrência ela aguarda em média duas semanas e participa de um grupo para saber se irá ou não representar contra seu suposto agressor. Neste momento ela reúne todas as suas forças para pensar racionalmente em qual a melhor decisão a se tomada.

Muitas das decisões são pautadas no medo. Segundo estatísticas da Delegacia da Mulher 60% das mulheres que fazem boletins de ocorrência estão na faixa de 31-50 anos e 83% já sofreram violência anteriormente. Este dado é extremamente relevante, pois nota-se o quanto estas mulheres demoram a procurar ajuda e o quanto ainda estão inertes e cegas diante das agressões seus companheiros. Após a agressão aceitam suas desculpas, como que “recuperando” aquela ingenuidade inicial fazendo com que o ciclo da violência se mantenha. Mas em algum momento, como já foi dito acima, a atitude torna-se imperiosa, sua vida está correndo risco. Hoje os índices de representação criminal estão acima da média (61%), o que nos leva a concluir que uma parte das mulheres estão em busca dos seus direitos. Mas, como dar o grito?
A mulher convoca seus irmãos psíquicos. Eles são os propulsores mais musculosos, os elementos de natureza mais agressiva da psique - seu animus. São a força interior à mulher que sabe agir quando chega a hora de matar. A primeira consiste na neutralização na psique da mulher da enorme capacidade paralisante do predador. A segunda é a substituição da virgem de olhos vidrados por uma de olhos vigilantes, com um guerreiro de cada lado se ela precisar convocá-los. (ESTES, 1992)
Essa personificação do animus está ligada a capacidade da mulher de não ser mais boazinha e neutralizar o predador. Na prática simboliza a denúncia. Seja para a Polícia Militar em sua própria residência ou após o fato na própria delegacia da mulher. Esse animus agora desperto faz com que ela saia da posição de vítima.


Hoje, com o advento da Lei Maria da Penha, há uma lei pesada que encarcera o agressor. E faz com que as mulheres fiquem numa posição muito ambivalentes: representar ou não representar? Mesmo com a ameaça à vida elas não desejam “matar” esse companheiro, nem prendê-lo. E está é a ultima tarefa da mulher: “a de permitir que sua natureza de vida-morte-vida desmanche o predador e o leve embora para ser incubado, transformado e devolvido à vida”. (ESTES, 1992)


No conto ela consegue matar o Barba Azul, mas como as coisas acontecem na realidade? Muitas mulheres, assim como nossa protagonista, conseguem se desvencilhar desta armadilha. Muitas delas entram num estado de torpor e sabem que se que "se ficar o bicho pega, se correr o bicho come”. Se ela não escapar, o homem sinistro se transforma em seu carcereiro e ela, em sua escrava. Se ela conseguir escapar, ele a perseguirá sem trégua, como se fosse seu dono. “As mulheres temem que o homem sinistro as encurrale para forçá-las novamente à submissão”. (ESTES, 1992)
Infelizmente os índices de mulheres agredidas por seus companheiros são muito altos após a tentativa de separação. A citação de Estes é o retrato do sentimento destas mulheres quando resolvem fazer uma denúncia. Elas temem a sua fúria sanguinária, mas dividem-se entre o medo de ir e o medo de ficar.
Hoje os inquéritos policiais são abandonados e retirados, pois muitas mulheres são coagidas e seduzidas por seus companheiros a manter-se no papel de vítima, de ingênua, de boazinha. Ilusoriamente elas tentam se enganar novamente “mas a barba dele nem é tão azul assim” minimizando a violência sofrida.
A cura só pode vir com a aceitação da consciência já adquirida “veja o que estiver vendo; ouça o que estiver ouvindo” (ESTES, 1992). Use a chave.



A Mulher Selvagem ensina às mulheres quando não se deve ser "boazinha" no que diz respeito à proteção da expressão de nossa alma. A natureza selvagem sabe que a "doçura" nessas ocasiões só faz com que o predador sorria. Quando a expressão da alma está sendo ameaçada, não é só aceitável fixar um limite e ser fiel a ele; é imprescindível. Quando a mulher age assim, não poderá haver intromissões na sua vida por muito tempo, pois ela reconhece logo o que está errado e tem condições de empurrar o predador de volta ao seu devido lugar. Ela já não é mais ingênua. Ela já não é mais uma meta ou um alvo. E é esse o antídoto mágico que afinal faz com que a chave pare de sangrar (ESTES, 1992).
A mulher “reconstituída” de uma relação-problema em que houve agressões sistemáticas cria uma aversão natural pelo relacionamento amoroso, pela possibilidade de um novo parceiro, sonho frustrado. A imagem do masculino fica maculada. Como curar essa imagem? Como confiar em alguém com os instintos tão testosteronizados? A cura deve ser completa: feminino e masculino. No conto a irmã mais nova casa-se novamente e herda toda a fortuna de seu terrível marido. Um final feliz, de integração, conjunctio. Mas o ciclo da violência só se desfaz quando a mulher consegue matar esse predador dentro dela, sem reincidências. Ela não tem mais “vista fraca”. O conto é a própria elaboração desse despertar, desse “enxergar o mundo”.


No caso dela manter esse homem ao seu lado necessitará ter na ponta da língua As Mil e uma Noites de Xerazade, para manter-se viva, noite após noite. Segundo Estes (1992):
Talvez o mais importante seja o fato de a história do Barba-azul trazer ao nível do consciente a chave psíquica, a capacidade de fazer qualquer pergunta a respeito de nós mesmos, da nossa família, dos nossos projetos e da vida como um todo. Depois, como um ser selvagem que tudo fareja, que cheira em volta, debaixo e dentro para descobrir o que uma coisa é, a mulher está livre para encontrar respostas verdadeiras para suas perguntas mais profundas e mais sombrias. Ela está livre para arrancar os poderes daquilo que a assolou e para voltar esses poderes, que antes foram empregados contra ela, para os excelentes usos que lhe forem mais convenientes. Assim é a mulher selvagem. (ESTES, 1992).
Esta é a saída, mas como fazer com que uma mulher recupere essa energia, vitalidade e ímpeto que lhe havia sido roubado? Ao contrário da esposa do Barba Azul há algumas mulheres que nunca ousam abrir a porta, permanecem cegas apesar de farejar o perigo. Ser livre é abrir mão do sonho de uma família, de um casamento e de um projeto de vida - até a violência é uma forma de relação. Mas em toda escolha há ganhos e perdas. Representar ou não representar? Eis a questão. Muitas mulheres desistem no meio do caminho e ressuscitam o Barba Azul em sua psique, mesmo sabendo que a denúncia é a única forma de conter a violência e desconhecem a gravidade do risco, seja emocionais ou físicos.
Há duas saídas para o ciclo da violência. Na primeira fase em que, apesar de ingênua fareja o perigo sob a forma de ameaças. Na segunda, diante da própria agressão desvela o segredo do predador e o denuncia. Na terceira fase do pedido de desculpas, da lua de mel em que ela pode revelar (velar novamente) o Manto de Isis, como um segredo, uma cegueira ou seguir seus instintos tornando-se dona seu próprio caminho, sua individuação. E quem sabe encontrar subterfúgios para um novo começo.



Araiê




REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ESTÉS, C., P. Mulheres que correm com os lobos. Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1992.













terça-feira, 22 de março de 2011

CISNE NEGRO



Quem ainda não assistiu o filme veja antes de prosseguir!
Neste site é possivel fazer download ou assistir online http://assistirfilmesonline.blz/cisne-negro-legendado/


Antes mesmo de assistir o filme quando minha amiga Cauana fez uma sinopse já me apaixonei. Fiquei vidrada o filme inteiro e sai com vontade de rodopiar o Cisne Negro no pisos do shopping, mas me contive! A trilha sonora é emocionante e permite que o espectador entre no pesadelo da personagem. Eu como sou amante de cinema e ainda mais de alquimia não pude deixar de observar estes aspectos no filme, admito que foi muito prazeroso analisar esta obra-prima de Aronofski. Ela nos transporta para nossa dúbia realidade e nossas amarras, se nos permitirmos, é claro.Vamos à obra!


O filme é uma obra sensível, um suspense psicológico imerso no mundo do balé de NY. Nina é a personificação da bailarina: meiga, delicada, bonita, passiva, extremamente sensível, indefesa e infantilizada. Vive em seu mundo tendo como única companhia sua mãe e o balé. Sua meta é a perfeição técnica e, na tentativa de alcançá-la, mantém uma imagem extremamente polida e autocrítica. Seu corpo é tratado como instrumento mantendo um controle exacerbado sobre si mesma. A única forma de contato mais íntimo com seu corpo se dá por arranhões nas costas enquanto dorme. Essa obsessão faz com que ela aprisione-se em seu próprio pesadelo paranóico, que tem como conseqüências a psicose.



A companhia de dança produzirá a peça “O Lago dos Cisnes” que é um clássico, musicada e, assim, imortalizada pelo compositor russo Tchaikovsky (1843-1893) o enredo tem origem em uma lenda alemã. Apesar das inúmeras versões a lenda conta a história do amor do Príncipe Siegfried por Odete, que um feiticeiro transformara em cisne, e que só pode voltar à forma humana à noite. Jurando-lhe eterno amor, Siegfried quer livrar Odete do feitiço. Mas o feiticeiro, Von Rothbart, leva sua filha Odílie, muito parecida com Odete, ao baile em que Siegfried deveria escolher sua noiva. O príncipe se deixa enganar e jura amor também a Odílie. Devastada Odete se joga de um penhasco, morre e na morte, encontra a liberdade. Nina é o Cisne Branco, asséptico e imaculado, que nada nos lagos formados pelas lágrimas da mãe, assim como é no conto que deu origem ao balé.



O cisne símbolo alquímico de albedo é por excelência uma ave imaculada, cuja brancura, cujo poder e cuja graça fazem uma viva epifania da luz. Há, todavia, duas alvuras, duas luzes: a do dia, solar e máscula; a da noite, lunar e feminina. Ele não se fragmenta e se quer assumir a síntese das duas, como é, por vezes, o caso, torna-se andrógino e, além disso, carregado de mistério sagrado. Por outro lado existe um cisne negro, não dessacralizado, mas carregado de um simbolismo oculto e invertido. A imagem do cisne, desde logo, se sintetiza, para Bachelard, como a do Desejo, que chama, para que se confundam as duas polaridades do mundo, manifestadas pelas suas luminárias. O cisne sempre visto, pelos alquimistas, como um emblema do mercúrio. Tem dele a cor e a mobilidade, bem como a volatilidade, proclamada por suas asas.




O significado metafórico da alquimia para Jung poderia ser pode ser visto como o problema central da psicologia, a integração dos opostos. Isto é encontrado em todo lugar e todos os níveis. Isto se realiza por meio de um processo simbólico muito complicado que coincide a grosso modo com o processo psicológico da individuação. Em alquimia este processo se chama conjunção de dois princípios representando a projeção em laboratório de um drama ao mesmo tempo cósmico e psicológico. Agora, Nina começa a experimentar o mundo interior como sendo repleta de luz - o brilho inicial interior que muitas vezes é erroneamente confundida com a verdadeira iluminação.
Este é apenas um primeiro encontro consciente com o mundo etérico, e em comparação com a experiência dos sentidos físicos é para muitas almas é tão avassalador como ser retratado como uma luz branca brilhante. O cisne é uma ave que é raramente visto em vôo, mas sim de natação sobre o lago ou rio, normalmente se deslocam sobre a superfície da água em termos alma, sobre a superfície da alma, a sua interface com o etérico do físico. Esta cor branca é a segunda cor do processo alquímico. Uma cor que denota purificação, bem como uma determinação em separar o espesso do sutil.



A primeira fase da alquímica é a operação negra, estágio em que a matéria é dissolvida e putrefata. O negrume ou “nigredo” é um estado inicial, sempre presente no início como uma qualidade da “prima materia”, do caos ou da “massa confusa”; pode também ser produzido pela separação dos elementos. Se o estado de divisão se apresenta de início, como acontece algumas vezes, então à união dos opostos se cumpre à semelhança da união do masculino e feminino seguido pela morte do produto da união e seu respectivo enegrecimento.
O processo de individuação traz ao indivíduo esta realidade da psique, pois seu objetivo é tornar consciência destas oposições paradoxais da alma, buscando assim o desenvolvimento da alma do indivíduo. Para isto, porém, a Nina deve se deparar com o sombrio, com o negativo, com a depressão, que é a primeira instância alquímica, a nigredo alquímica para depois encontrar albus e reunir todas as cores. Este é o lado positivo da depressão, unir opostos, transformar criativamente a psique, promover Coagulatio. O branqueamento não implica nem numa redução da sombra, nem em sua conscientização. Ao invés disso ele significa mais espaço para carregar seus altos e baixos, sua estatura total. A alma é mais branca porque a sombra está livre da repressão e manifesta de maneiras detalhadamente conscientes.



O jogo proposto no filme intercala, principalmente, as duas etapas na psique de Nina simbolizado pelo cisne branco e pelo cisne negro. Aronofski se utiliza de cores para marcar as fases do processo. O negro, o vermelho e o branco simbolizam as antigas cores associadas ao nascimento, à vida e à morte. Essas cores também representam velhas idéias de descida, morte e renascimento — o negro significando a dissolução de antigos valores; o vermelho, o sacrifício de ilusões mantidas anteriormente; e o branco, a nova luz, o novo conhecimento que deriva de ter vivenciado as duas primeiras cores. As cores da história são extremamente preciosas, pois cada uma tem seu lado de morte e seu lado de vida.





O negro é a cor da lama, da fertilidade, da substância básica na qual semeamos nossas idéias. No entanto, o negro é também a cor da morte, do escurecimento da luz. O negro é a cor da descida. O negro é uma promessa de que Nina logo irá saber algo que antes não sabia. O vermelho simbolizado pelo sangue que ela repele em diversas cenas é a cor do sacrifício, da fúria, de matar e de ser morto. No entanto, o vermelho é também a cor da vida vibrante, da emoção dinâmica, da excitação, de eros e do desejo características que ela tenta ocultar a todo momento. O vermelho é uma promessa de que uma ascensão ou um nascimento está por acontecer. O branco é a cor do novo, do puro, do imaculado. É também a cor da alma livre do corpo, do espírito desembaraçado do físico. Quando surge o branco, tudo fica, temporariamente, tabula rasa sem nenhuma inscrição. O branco é uma promessa de que existe nutrição suficiente para que tudo comece de novo.
No início do filme fica evidente a predominância do rosa e do branco. Ela é cisne branco, mas aprisionada ainda destituído de suas virtudes, sua natureza está subjugada e reprimida sendo necessário passar pela fase negra para depois haver o embranquecimento real. O quarto de Nina, seus ursinhos e a bailarina na caixinha de música simbolizam estas características.




Com o desenrolar do filme ela começa a utilizar o cinza demonstrando a transição entre o branco e negro. No processo alquímico, parte-se do primeiro estado, caótico e pouco a pouco, essas águas com o início do trabalho alquímico se tornam cinzas, assim permanece um tempo, que é o de purificação, para mais tarde regressar à cor negra, iniciando o verdadeiro trabalho alquímico.



O filme inicia com o pesadelo de Nina no qual ela fazia o papel principal no balé “O Lago dos Cisnes”. O sonho era o prólogo da peça, cena em que Rothbart, o bruxo que se apresentava como uma ave negra, símbolo de nigredo lança o feitiço. Talvez um verdadeiro prenúncio psíquico do processo de transformação que ela viveria.



No mesmo dia em que teve o sonho ela vai à companhia de Balé, e, no caminho percebe-se um reflexo na janela do metrô de uma forma diferente. Este é sua primeira visão de Lily, personificação de sua sombra e rival. Seus reflexos praticamente se confundem.



Depois dos testes, a bailarina vai até Thomas, e esse sempre a instiga de forma enérgica para que desenvolva as características que estão em sua sombra: sensualidade, agressividade, espontaneidade. Nina nessa conversa é beijada “a força” pelo diretor e o morde nos lábios. E é essa atitude que lhe garante o papel principal. É como se nesse momento Thomas tivesse enxergado em Nina um pouco daquilo que ele buscava. Seu conselho, se masturbar, é o primeiro passo para sentir os prazeres do próprio corpo.


Thomas é a única figura masculina significativa, e se torna, para Nina seu Animus. Seu sobrenome Leroy em francês significa “O Rei”. Sua atitude apesar de sexualizada tem o papel de Mentor, permitindo que Nina traga à tona o Cisne Negro, afinal ela não sentia prazer em nada, nem na dança, nem no seu corpo, nem na vida. A libido é parte da questão existencial de Nina. A libido de Jung, aquela que o cientista afirma ser a energia psíquica que inclui a sexual é apetite, agressividade, sexualidade, fome, sede e toda sorte de necessidade e vontades.



Nina já escolhida por seu coreógrafo e diretor Thomas é questionada, mais uma vez, a demonstrar suas capacidades, já que sua fragilidade ingênua - que é perfeita para o papel de Odette porém seu jeito se ser comprometeria a interpretação de protagonista pois Nina também deve desempenhar o papel da Rainha dos Cisnes, Odile. Nina, então, é desafiada pela própria vida, pelo seu próprio mundo, a entrar em um acordo com sua psique polarizada entre a "persona" consciente, o papel de menininha da mamãe, e a sua sombra: a mulher sedutora, violenta, que ela reprime no inconsciente.



O cisne Negro é, portanto, o desafio do encontro de Nina com sua própria sombra, ou, seja, segundo Jung, com todos os elementos que possuímos, mas que são reprimidos, que não reconhecemos como sendo nossos. A questão da projeção interna no meio externo fica sugerida várias vezes pela presença de espelhos sempre presentes ante Nina. Sua maior rival no corpo de baile, a sensual e desinibida Lily é ao mesmo tempo seu alter-ego, a pessoa que estimula a eclosão do "Cisne Negro" em Nina. Lily encarna o arquétipo de Lilith, a mulher na sua forma demonizada.


Na verdade, as duas bailarinas acabam sendo expressões de Odile e Odette ao nível da disputa real, embora, na mente conturbada de Nina, Lily acabe por apresentar traços mais fortes do que realmente possui. Uma e outra personagem são metáforas das polaridades internas extremas e dos potenciais que todos possuem, mas que, aqui, se inserem mais na questão do desenvolvimento da psique feminina. A cena da boate marca o inicio da simbiose e o aparecimento do Cisne Negro em Nina. Ela se entorpece e relaxa. A cena trás uma iluminação vermelho e verde mostrando novamente os opostos e sua fusão. Para o espectador mais atento nesta cena é possível visualizar Nina por um segundo maquiada como o cisne negro, logo após uma lua e por último os olhos do cisne negro. Neste momento o Cisne Negro começa a surgir, ela enfrenta a mãe e permite-se sentir prazer com sua alucinação de Lily.


Neste momento Nina desperta para o desejo, à competitividade, ao processo de enfrentar desafios. Ela precisava somente de uma sábia imagem interna à qual pudesse se agarrar, um resquício de instinto que durasse até que ela pudesse dar início ao longo trabalho de reformulação do instinto e da percepção íntima. No fundo este é o melhor solo para semear e ver crescer algo de novo. Nesse sentido, chegar ao fundo do poço, embora extremamente doloroso, é chegar ao terreno de semeadura.
Quanto mais conscientemente uma dessas polaridades é hipertrofiada, o mesmo ocorre com a outra, mas de modo inconsciente, o que pode causar um conflito psicológico que, em casos extremos, leva ao surto psicótico. Carl Jung a chamava de sparring, ou “par¬ceira de treino de boxe”; ela é a oponente dentro de nós que expõe falhas e aguça habilidades. É a professora, o treinador, o guia que nos apóia no descobrimento de nossa verdadeira magnificência. E, quando ela começa a entrar em contato com seu lado sombrio e instintivo sua força negativa retira da consciência suas noções dependentes e confortantes de bondade. Ao desconstruir a presença na ausência, a nigredo torna possível a transformação psicológica.

O filme é recheado por duplos, o óbvio Cisne Branco/ Negro dentro de Nina que se mostra na dança e no simbólico, Nina e Lily na disputa real. Nina e Beth, que também que rivalizam na atenção de Thomas, Nina roubando seus objetos incorpora o lado sombrio de Beth que tanto lhe causa admiração. Nina e a mãe que curiosamente veste-se apenas de preto simbolizando seu lado sombrio, o complexo materno negativo. É um jogo de espelho que mergulha num “mise en abyme” alternando momentos de realidade com a realidade criada por seus delírios e alucinações.



Sua mãe, sempre “zelosa”, chega a dar arrepios no espectador, com seus cuidados invasivos. Nina sempre foi tratada como uma criança, sempre controlada e submissa. Parece uma versão moderna de Perséfone e Deméter, que precisa enfrentar seu próprio Hades podendo reconhecer-se em sua própria profundidade, sentir seus elementos aparentemente "negativos" se quiser atingir a perfeição, metáfora da individuação. No caso da protagonista, a sombra possui conteúdos invocados pela sua mãe, uma bailarina medíocre e frustrada que desistiu do sonho para cuidar da filha. Nina carrega nas suas costas fracasso da mãe. É visível o amor entre as duas, mas esse é manifestado de forma doentia por parte da mãe, como o fato dela ser a única que conhece o segredo de Nina, de ferir a própria pele. E isso acaba se tornando um elemento de manipulação da mãe, que evita que a filha cresça com a justificativa inconsciente de que sozinha ela não dá conta da pressão do mundo.



Emprestando da termos da teoria psicanalítica enfatiza-se aqui a primeira fase do complexo de Édipo o filme mostra a relação simbiótica entre mãe e filha. Não há a figura do pai, o terceiro na relação resultando numa psicose que eclode quando ela precisa separar-se. O destino de Nina fica preso ao destino da relação mãe-filha. Nina se esconde na superproteção materna, e, em contrapartida, se submete ao abuso e a tirania. O lago dos cisnes se mostra mais do que um trabalho cobiçado é um ritual de iniciação para entrar no mundo das mulheres adultas. Quando a natureza instintiva quase foi exterminada a psicose começa a dominar a cena, na forma de delírios e alucinação visuais e auditivas.
Nina tem fome de alma que implica a privação de seus atributos: a criatividade, a percepção sensorial e outros dons. Sua mãe molda sua identidade, isso fica visível na pintura dos seus retratos,ela deseja uma “sweet girl”. Como nunca lhe foi permitido viver seu lado instintivo quando ela se libera, perde o controle. Esses aspectos rejeitados, desvalorizados e "inaceitáveis" da alma e do self não ficam simplesmente ali parados nas trevas, mas conspiram para decidir quando e como Nina fará para “quebrar o feitiço” que a encarcera para alcançar a liberdade. Eles borbulham ali no inconsciente, em fervilhante ebulição, até que explodem no dia da estréia em todas as direções num caudal descontrolado.
Ela descobre que precisa encarar-se como o Cisne Negro, papel que ela não conseguia interpretar, para só assim tornar-se mulher por inteira. O filme aborda sobre tudo aquilo que se nega e desconhece em si. A jovem passa o filme lutando contra as suas unhas e as marcas que elas deixam nas suas costas enquanto dorme único momento que em que ela se permite viver este lado instintivo. Esse sintoma parece ser a única forma da sua agressividade se manifestar, mas a mãe detentora deste segredo tenta reprimi-lo, cada vez mais, podando as suas “garras” com tesouras e lixas de unha. A agressividade que deveria ser utilizada em sua legítima defesa está tão inconsciente que assume vida própria e acaba voltando contra si mesma. Assim, dá-se inicio a uma metamorfose que expressa àquilo que acontece com muitas pessoas que sucumbem à emergência do material inconsciente pela psicose.



Na tentativa de admiti-la e integrá-la, o corpo metaforicamente passa por uma mutação e incorpora os caracteres do Cisne Negro. Conforme o filme avança e Nina submerge cada vez mais dentro de si mesma e a loucura vai tomando conta. Neste primeiro ato ainda podemos avistar aquela menina doce, frágil e insegura aprisionada pelo desejo da mãe. O fundo do poço do cisne branco encarcerado é a queda no pas de deux.



Esta cena simboliza a renovação, o começo do fim. Um novo começo que se inicia com a morte, e que marca o caminho para a vida, a individuação, em paralelo com o nascimento de um novo mundo. Afinal, o objetivo de todo homem é realização da totalidade individual, com a integração de todos os aspectos de nossa personalidade originária (Grinberg, 1997). Quando volta para o camarim para a troca de roupa Nina se fere com um pedaço de espelho (na imagem de Lily) - aquele que reflete, que nos mostra quem somos e simboliza a coragem de assumir a sombra e lutar com a força de quem faz o que for preciso para obter a vitória evidenciando com maestria o arquétipo de Odile.



A maldade pura e simples, a satisfação por alcançar o seu intento. Lily encarna esse arquétipo do espírito, em seu aspecto negativo, faz com que a infantil Nina comece a morrer. Ela morre para o mundo da mãe para que esta terrível revelação de si mesma, até então, pouco conhecida e, portanto, de caráter terrível e incerto venha à tona. Está confiante o suficiente para saltar rumo ao desconhecido. Só, então, percebe o sentido da perfeição. No segundo ato ela encarna o seu lado negro, e não vai mais para o palco representar o Cisne Negro, é o Cisne Negro.



A partir da transformação em Cisne Negro (nigredo), a lavagem conduz diretamente ao embranquecimento ou então ocorre que a alma (anima) liberta pela morte é reunida ao corpo morto e cumpre sua ressurreição; pode dar-se finalmente as múltiplas cores (volta ao palco para a morte do cisne branco) - a "cauda pavonis"- conduzam à cor branca e una afinal ela contém todas as cores.
Finalmente ela entende e atinge a perfeição. A mulher e a bailarina nasceram ali, ao mesmo tempo. É preciso matar algo para que surja aquilo que podemos ser. A Nigredo, o negro, sugere a morte, a sombra, o pesado, o denso, o sofrimento. Nesse momento Nina encontra-se perdida, riste e paranóica como se algo houvesse se dissolvido Depois disso é como se o preto que é a ausência de todas as cores transformasse no branco, a presença. Só que é o branco decomposto em todas as cores por uma espécie de cristal. Muitos alquimistas representaram o desmembramento do branco com o desmembramento do corpo humano. Acontece na realidade o desmembramento da psique; mas é necessário manter essa dissociação da psique sob o controle do Ego, o que na foi possível para Nina devido à intensidade.
A busca de Nina passa pela sexualidade sim, mas esse é só um caminho para alcançar muito mais, pois através disso e da ajuda das pessoas que vivem mais sua libido do que ela, ela encara todos os pontos obscuros que são frutos de sua rigidez moral, sexual e estética. Rumo à transformação de seu personagem, ela transforma seu ser, num processo metamórfico surpreendente. Nina libera com literalmente sangue nos olhos seu lado sombrio, seguindo a intuição do artista divino em busca da perfeição, que nada tem a ver com técnico. Segundo Jung, precisamos, na verdade, aceitar a sombra e integrá-la, assim diminuindo sua influência inconsciente sobre nós.
No terceiro ato, agora vitalizada surge a imagem de Albedo, o estado lunar ou de prata, que ainda deve alçar-se ao estado solar.



A "albedo" é, por assim dizer, a aurora; mas só a "rubedo" é o nascer do sol. Na cena final, a morte do cisne simbolizado por Rubedo: ou Operação Vermelha, é o estágio em que se produz a Pedra Filosofal, o casamento alquímico. Ela sobe e atrás de si há um sol, símbolo do self e ápice operação vermelha. Para insuflar-lhe vida, deve ter "sangue", deve possuir aquilo a que os alquimistas denominam a rubedo, a "vermelhidão" da vida. Só a experiência total da vida pode transformar esse estado ideal de albedo num modo de existência plenamente humano. Só o sangue pode reanimar o glorioso estado de consciência em que o derradeiro vestígio de negrume é dissolvido, em que o diabulum (desconexão simbólica) deixa de ter existência autônoma e se junta à profunda unidade da psique. Então, a opus magnum está concluída: a alma humana está completamente integrada. O cisne branco ferido simboliza o casamento alquímico assim, o branco e o vermelho - Rainha e Rei - pode então celebrar suas "nuptiae chymicae" (núpcias químicas) nesta fase.


O processo de individuação não consiste num desenvolvimento linear, mas num movimento de circunvolução que conduz a um novo centro psíquico – o self.
Quando consciente e inconsciente vêm ordenar-se em torno do self, a personalidade completa-se; o self será, então, o centro da personalidade total, a preliminar será o desvestimento das falsas roupagens da persona. Ele representa a autonomia da psique e as relações paradoxais do Self, também encontradas constantemente nos textos alquímicos. Sua coagulação seria então concretizar, ou seja, promover a ligação Ego/Self.
Num confronto contra a própria imagem, ela crê ter destruído a sombra projetada no exterior. Mas agora o Cisne Negro a habita, reina em si, enquanto o Cisne Branco torna-se incômodo, artificial. No entanto, de tão intenso, o papel sombrio conquista o público. Ela está realizada e, ao avistar a platéia, só consegue enxergar a imagem da mãe, feliz e vibrante. Entende então que, desde o princípio, tudo o que ela lhe desejara era a felicidade, a realização e a plenitude que não conseguiu vivenciar.
A alquimia aqui pode ser às vezes muito "explosiva" e em ritmo acelerado. Nina sente que tudo está saindo de suas mãos através de seu delírio. E de repente: ouro "Opus Magnum”. Em termos psicológicos, a pedra filosofal produzida em rubedo poderia ser comparada ao que se busca no processo de individuação, ou seja, a completude do ser, o tornar-se consciente e uno, o self.
Tendo isto como realidade, a processo alquímico seria então o próprio processo de individuação, ou seja, o que gera o desenvolvimento e a transformação. Nina através da sua própria imagem projetada no espelho, retrato da sua alma humana em fase de desenvolvimento aspira ao alto voando livre das restrições do corpo preso a terra buscando a luz celestial refletindo as experiências de alquimia interior da alma, a subida da alma livre do corpo preso a terra e os sentidos físicos. Analisar sob a perspectiva do sal alquímico o vivido subjetivo assume um significado radicalmente diverso. As profundas feridas de Nina não mais somente como lacerações a serem cicatrizadas, mas como fontes de sal das quais tira uma essência preciosa e sem as quais sua alma não pode viver.


Araiê