Antes mesmo de assistir o filme quando minha amiga Cauana fez uma sinopse já me apaixonei. Fiquei vidrada o filme inteiro e sai com vontade de rodopiar o Cisne Negro no pisos do shopping, mas me contive! A trilha sonora é emocionante e permite que o espectador entre no pesadelo da personagem. Eu como sou amante de cinema e ainda mais de alquimia não pude deixar de observar estes aspectos no filme, admito que foi muito prazeroso analisar esta obra-prima de Aronofski. Ela nos transporta para nossa dúbia realidade e nossas amarras, se nos permitirmos, é claro.Vamos à obra!
O filme é uma obra sensível, um suspense psicológico imerso no mundo do balé de NY. Nina é a personificação da bailarina: meiga, delicada, bonita, passiva, extremamente sensível, indefesa e infantilizada. Vive em seu mundo tendo como única companhia sua mãe e o balé. Sua meta é a perfeição técnica e, na tentativa de alcançá-la, mantém uma imagem extremamente polida e autocrítica. Seu corpo é tratado como instrumento mantendo um controle exacerbado sobre si mesma. A única forma de contato mais íntimo com seu corpo se dá por arranhões nas costas enquanto dorme. Essa obsessão faz com que ela aprisione-se em seu próprio pesadelo paranóico, que tem como conseqüências a psicose.
A companhia de dança produzirá a peça “O Lago dos Cisnes” que é um clássico, musicada e, assim, imortalizada pelo compositor russo Tchaikovsky (1843-1893) o enredo tem origem em uma lenda alemã. Apesar das inúmeras versões a lenda conta a história do amor do Príncipe Siegfried por Odete, que um feiticeiro transformara em cisne, e que só pode voltar à forma humana à noite. Jurando-lhe eterno amor, Siegfried quer livrar Odete do feitiço. Mas o feiticeiro, Von Rothbart, leva sua filha Odílie, muito parecida com Odete, ao baile em que Siegfried deveria escolher sua noiva. O príncipe se deixa enganar e jura amor também a Odílie. Devastada Odete se joga de um penhasco, morre e na morte, encontra a liberdade. Nina é o Cisne Branco, asséptico e imaculado, que nada nos lagos formados pelas lágrimas da mãe, assim como é no conto que deu origem ao balé.
O cisne símbolo alquímico de albedo é por excelência uma ave imaculada, cuja brancura, cujo poder e cuja graça fazem uma viva epifania da luz. Há, todavia, duas alvuras, duas luzes: a do dia, solar e máscula; a da noite, lunar e feminina. Ele não se fragmenta e se quer assumir a síntese das duas, como é, por vezes, o caso, torna-se andrógino e, além disso, carregado de mistério sagrado. Por outro lado existe um cisne negro, não dessacralizado, mas carregado de um simbolismo oculto e invertido. A imagem do cisne, desde logo, se sintetiza, para Bachelard, como a do Desejo, que chama, para que se confundam as duas polaridades do mundo, manifestadas pelas suas luminárias. O cisne sempre visto, pelos alquimistas, como um emblema do mercúrio. Tem dele a cor e a mobilidade, bem como a volatilidade, proclamada por suas asas.
O significado metafórico da alquimia para Jung poderia ser pode ser visto como o problema central da psicologia, a integração dos opostos. Isto é encontrado em todo lugar e todos os níveis. Isto se realiza por meio de um processo simbólico muito complicado que coincide a grosso modo com o processo psicológico da individuação. Em alquimia este processo se chama conjunção de dois princípios representando a projeção em laboratório de um drama ao mesmo tempo cósmico e psicológico. Agora, Nina começa a experimentar o mundo interior como sendo repleta de luz - o brilho inicial interior que muitas vezes é erroneamente confundida com a verdadeira iluminação.
A primeira fase da alquímica é a operação negra, estágio em que a matéria é dissolvida e putrefata. O negrume ou “nigredo” é um estado inicial, sempre presente no início como uma qualidade da “prima materia”, do caos ou da “massa confusa”; pode também ser produzido pela separação dos elementos. Se o estado de divisão se apresenta de início, como acontece algumas vezes, então à união dos opostos se cumpre à semelhança da união do masculino e feminino seguido pela morte do produto da união e seu respectivo enegrecimento.
O jogo proposto no filme intercala, principalmente, as duas etapas na psique de Nina simbolizado pelo cisne branco e pelo cisne negro. Aronofski se utiliza de cores para marcar as fases do processo. O negro, o vermelho e o branco simbolizam as antigas cores associadas ao nascimento, à vida e à morte. Essas cores também representam velhas idéias de descida, morte e renascimento — o negro significando a dissolução de antigos valores; o vermelho, o sacrifício de ilusões mantidas anteriormente; e o branco, a nova luz, o novo conhecimento que deriva de ter vivenciado as duas primeiras cores. As cores da história são extremamente preciosas, pois cada uma tem seu lado de morte e seu lado de vida.
O negro é a cor da lama, da fertilidade, da substância básica na qual semeamos nossas idéias. No entanto, o negro é também a cor da morte, do escurecimento da luz. O negro é a cor da descida. O negro é uma promessa de que Nina logo irá saber algo que antes não sabia. O vermelho simbolizado pelo sangue que ela repele em diversas cenas é a cor do sacrifício, da fúria, de matar e de ser morto. No entanto, o vermelho é também a cor da vida vibrante, da emoção dinâmica, da excitação, de eros e do desejo características que ela tenta ocultar a todo momento. O vermelho é uma promessa de que uma ascensão ou um nascimento está por acontecer. O branco é a cor do novo, do puro, do imaculado. É também a cor da alma livre do corpo, do espírito desembaraçado do físico. Quando surge o branco, tudo fica, temporariamente, tabula rasa sem nenhuma inscrição. O branco é uma promessa de que existe nutrição suficiente para que tudo comece de novo.
Com o desenrolar do filme ela começa a utilizar o cinza demonstrando a transição entre o branco e negro. No processo alquímico, parte-se do primeiro estado, caótico e pouco a pouco, essas águas com o início do trabalho alquímico se tornam cinzas, assim permanece um tempo, que é o de purificação, para mais tarde regressar à cor negra, iniciando o verdadeiro trabalho alquímico.
O filme inicia com o pesadelo de Nina no qual ela fazia o papel principal no balé “O Lago dos Cisnes”. O sonho era o prólogo da peça, cena em que Rothbart, o bruxo que se apresentava como uma ave negra, símbolo de nigredo lança o feitiço. Talvez um verdadeiro prenúncio psíquico do processo de transformação que ela viveria.
No mesmo dia em que teve o sonho ela vai à companhia de Balé, e, no caminho percebe-se um reflexo na janela do metrô de uma forma diferente. Este é sua primeira visão de Lily, personificação de sua sombra e rival. Seus reflexos praticamente se confundem.
Depois dos testes, a bailarina vai até Thomas, e esse sempre a instiga de forma enérgica para que desenvolva as características que estão em sua sombra: sensualidade, agressividade, espontaneidade. Nina nessa conversa é beijada “a força” pelo diretor e o morde nos lábios. E é essa atitude que lhe garante o papel principal. É como se nesse momento Thomas tivesse enxergado em Nina um pouco daquilo que ele buscava. Seu conselho, se masturbar, é o primeiro passo para sentir os prazeres do próprio corpo.
Thomas é a única figura masculina significativa, e se torna, para Nina seu Animus. Seu sobrenome Leroy em francês significa “O Rei”. Sua atitude apesar de sexualizada tem o papel de Mentor, permitindo que Nina traga à tona o Cisne Negro, afinal ela não sentia prazer em nada, nem na dança, nem no seu corpo, nem na vida. A libido é parte da questão existencial de Nina. A libido de Jung, aquela que o cientista afirma ser a energia psíquica que inclui a sexual é apetite, agressividade, sexualidade, fome, sede e toda sorte de necessidade e vontades.
Nina já escolhida por seu coreógrafo e diretor Thomas é questionada, mais uma vez, a demonstrar suas capacidades, já que sua fragilidade ingênua - que é perfeita para o papel de Odette porém seu jeito se ser comprometeria a interpretação de protagonista pois Nina também deve desempenhar o papel da Rainha dos Cisnes, Odile. Nina, então, é desafiada pela própria vida, pelo seu próprio mundo, a entrar em um acordo com sua psique polarizada entre a "persona" consciente, o papel de menininha da mamãe, e a sua sombra: a mulher sedutora, violenta, que ela reprime no inconsciente.
O cisne Negro é, portanto, o desafio do encontro de Nina com sua própria sombra, ou, seja, segundo Jung, com todos os elementos que possuímos, mas que são reprimidos, que não reconhecemos como sendo nossos. A questão da projeção interna no meio externo fica sugerida várias vezes pela presença de espelhos sempre presentes ante Nina. Sua maior rival no corpo de baile, a sensual e desinibida Lily é ao mesmo tempo seu alter-ego, a pessoa que estimula a eclosão do "Cisne Negro" em Nina. Lily encarna o arquétipo de Lilith, a mulher na sua forma demonizada.
Na verdade, as duas bailarinas acabam sendo expressões de Odile e Odette ao nível da disputa real, embora, na mente conturbada de Nina, Lily acabe por apresentar traços mais fortes do que realmente possui. Uma e outra personagem são metáforas das polaridades internas extremas e dos potenciais que todos possuem, mas que, aqui, se inserem mais na questão do desenvolvimento da psique feminina. A cena da boate marca o inicio da simbiose e o aparecimento do Cisne Negro em Nina. Ela se entorpece e relaxa. A cena trás uma iluminação vermelho e verde mostrando novamente os opostos e sua fusão. Para o espectador mais atento nesta cena é possível visualizar Nina por um segundo maquiada como o cisne negro, logo após uma lua e por último os olhos do cisne negro. Neste momento o Cisne Negro começa a surgir, ela enfrenta a mãe e permite-se sentir prazer com sua alucinação de Lily.
Neste momento Nina desperta para o desejo, à competitividade, ao processo de enfrentar desafios. Ela precisava somente de uma sábia imagem interna à qual pudesse se agarrar, um resquício de instinto que durasse até que ela pudesse dar início ao longo trabalho de reformulação do instinto e da percepção íntima. No fundo este é o melhor solo para semear e ver crescer algo de novo. Nesse sentido, chegar ao fundo do poço, embora extremamente doloroso, é chegar ao terreno de semeadura.
O filme é recheado por duplos, o óbvio Cisne Branco/ Negro dentro de Nina que se mostra na dança e no simbólico, Nina e Lily na disputa real. Nina e Beth, que também que rivalizam na atenção de Thomas, Nina roubando seus objetos incorpora o lado sombrio de Beth que tanto lhe causa admiração. Nina e a mãe que curiosamente veste-se apenas de preto simbolizando seu lado sombrio, o complexo materno negativo. É um jogo de espelho que mergulha num “mise en abyme” alternando momentos de realidade com a realidade criada por seus delírios e alucinações.
Sua mãe, sempre “zelosa”, chega a dar arrepios no espectador, com seus cuidados invasivos. Nina sempre foi tratada como uma criança, sempre controlada e submissa. Parece uma versão moderna de Perséfone e Deméter, que precisa enfrentar seu próprio Hades podendo reconhecer-se em sua própria profundidade, sentir seus elementos aparentemente "negativos" se quiser atingir a perfeição, metáfora da individuação. No caso da protagonista, a sombra possui conteúdos invocados pela sua mãe, uma bailarina medíocre e frustrada que desistiu do sonho para cuidar da filha. Nina carrega nas suas costas fracasso da mãe. É visível o amor entre as duas, mas esse é manifestado de forma doentia por parte da mãe, como o fato dela ser a única que conhece o segredo de Nina, de ferir a própria pele. E isso acaba se tornando um elemento de manipulação da mãe, que evita que a filha cresça com a justificativa inconsciente de que sozinha ela não dá conta da pressão do mundo.
Emprestando da termos da teoria psicanalítica enfatiza-se aqui a primeira fase do complexo de Édipo o filme mostra a relação simbiótica entre mãe e filha. Não há a figura do pai, o terceiro na relação resultando numa psicose que eclode quando ela precisa separar-se. O destino de Nina fica preso ao destino da relação mãe-filha. Nina se esconde na superproteção materna, e, em contrapartida, se submete ao abuso e a tirania. O lago dos cisnes se mostra mais do que um trabalho cobiçado é um ritual de iniciação para entrar no mundo das mulheres adultas. Quando a natureza instintiva quase foi exterminada a psicose começa a dominar a cena, na forma de delírios e alucinação visuais e auditivas.
Na tentativa de admiti-la e integrá-la, o corpo metaforicamente passa por uma mutação e incorpora os caracteres do Cisne Negro. Conforme o filme avança e Nina submerge cada vez mais dentro de si mesma e a loucura vai tomando conta. Neste primeiro ato ainda podemos avistar aquela menina doce, frágil e insegura aprisionada pelo desejo da mãe. O fundo do poço do cisne branco encarcerado é a queda no pas de deux.
Esta cena simboliza a renovação, o começo do fim. Um novo começo que se inicia com a morte, e que marca o caminho para a vida, a individuação, em paralelo com o nascimento de um novo mundo. Afinal, o objetivo de todo homem é realização da totalidade individual, com a integração de todos os aspectos de nossa personalidade originária (Grinberg, 1997). Quando volta para o camarim para a troca de roupa Nina se fere com um pedaço de espelho (na imagem de Lily) - aquele que reflete, que nos mostra quem somos e simboliza a coragem de assumir a sombra e lutar com a força de quem faz o que for preciso para obter a vitória evidenciando com maestria o arquétipo de Odile.
A maldade pura e simples, a satisfação por alcançar o seu intento. Lily encarna esse arquétipo do espírito, em seu aspecto negativo, faz com que a infantil Nina comece a morrer. Ela morre para o mundo da mãe para que esta terrível revelação de si mesma, até então, pouco conhecida e, portanto, de caráter terrível e incerto venha à tona. Está confiante o suficiente para saltar rumo ao desconhecido. Só, então, percebe o sentido da perfeição. No segundo ato ela encarna o seu lado negro, e não vai mais para o palco representar o Cisne Negro, é o Cisne Negro.
A partir da transformação em Cisne Negro (nigredo), a lavagem conduz diretamente ao embranquecimento ou então ocorre que a alma (anima) liberta pela morte é reunida ao corpo morto e cumpre sua ressurreição; pode dar-se finalmente as múltiplas cores (volta ao palco para a morte do cisne branco) - a "cauda pavonis"- conduzam à cor branca e una afinal ela contém todas as cores.
A "albedo" é, por assim dizer, a aurora; mas só a "rubedo" é o nascer do sol. Na cena final, a morte do cisne simbolizado por Rubedo: ou Operação Vermelha, é o estágio em que se produz a Pedra Filosofal, o casamento alquímico. Ela sobe e atrás de si há um sol, símbolo do self e ápice operação vermelha. Para insuflar-lhe vida, deve ter "sangue", deve possuir aquilo a que os alquimistas denominam a rubedo, a "vermelhidão" da vida. Só a experiência total da vida pode transformar esse estado ideal de albedo num modo de existência plenamente humano. Só o sangue pode reanimar o glorioso estado de consciência em que o derradeiro vestígio de negrume é dissolvido, em que o diabulum (desconexão simbólica) deixa de ter existência autônoma e se junta à profunda unidade da psique. Então, a opus magnum está concluída: a alma humana está completamente integrada. O cisne branco ferido simboliza o casamento alquímico assim, o branco e o vermelho - Rainha e Rei - pode então celebrar suas "nuptiae chymicae" (núpcias químicas) nesta fase.
O processo de individuação não consiste num desenvolvimento linear, mas num movimento de circunvolução que conduz a um novo centro psíquico – o self.
Araiê
Maravilhoso!!
ResponderExcluirFez jus ao filme.
Parabéns!
Cauana
Sensacional! sem palavras...Parabéns...
ResponderExcluirMarcela/ Mama
Show!!!
ResponderExcluirParabéns!
Li várias críticas e análises sobre o filme, também através da abordagem junguiana, mas realmente essa ficou completa e muito clara!!! Orgulhinho haha =)
ResponderExcluirkarakas.... muito bom mesmo. O filme é maravilhoso, mas a análise esta divina
ResponderExcluir.
perfeito
ResponderExcluirPerfeito, uma belissima analise do filme!
ResponderExcluirParabens!
Gosto mto das teorias do Jung, apesar de nao aplica-la!
Desde já estou seguindo seu blog!
Abraços!!
Muiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiito legal!
ResponderExcluirBacana demais sua analise!
ResponderExcluirPercebe-se um tato mais
sútil e certeiro na sua crítica.
Tá de parabéns!
Olha só, estou fazendo pesquisas
de analises Junguianas na literatura.
Se tiver algo a me indicar, ficarei
muito grato.
Pode me contatar por aqui: leokarter@hotmail.com
Abraço e até!
Ficou fantástica a sua crítica do filme. Muito boa mesmo. Você conseguiu perceber tudo bem direitinho e descreveu isso de maneira honrosa. Parabéns (:
ResponderExcluirArtigo completíssimo! Adorei a critica!
ResponderExcluirMuito bom.
ResponderExcluirVocê está de parabéns