segunda-feira, 11 de julho de 2011

UNIVERSO PARTICULAR- A ARTE DE CRIAR CENÁRIOS PELO JOGO DE AREIA





Participei de um projeto de pesquisa para avaliação afetiva/cognitiva de crianças e adolescentes com Altas Habilidades/Superdotação no último ano do curso de Psicologia e utilizamos como ferramenta para a avaliação o método Sandplay. Ele foi desenvolvido pela psicóloga junguiana suiça Dora Kalff (2003), que a partir do “World Technique” de Margareth Lowenfeld o batizou de SandPlay. A técnica consiste na utilização de uma caixa de madeira azul padronizada com areia em seu interior e diversas miniaturas disponíveis para serem utilizadas pelos pacientes. Estas miniaturas são classificadas por diversas categorias como, por exemplo, objetos de construção, alimentos, figuras humanas, animais, árvores e figuras fantásticas.
 A caixa, assim como uma folha de papel em branco é um universo neutro que será preenchido pela psique de seu criador. A consigna é pedir que o indivíduo faça “uma cena”. Após um tempo de observação das miniaturas, dando o estranho pressentimento que elas falam por si próprias, o paciente as coloca na caixa com ajuda das mãos. A partir disso um universo rico em simbologia se abre. 
Fiz a experiência de construir algumas caixas para sentir como se dá este processo. Senti que no início estava sendo um pouco conduzida por conceitos simbólicos já conhecidos por mim, fiz uma caixa linda e cheia de persona, que a função psíquica relacional voltada ao mundo externo, na busca de adaptação social. Tentei “manipular”, mas aquilo já falava a meu respeito. Na segunda caixa senti como se minhas mãos fossem atraídas para certas imagens e me deixei levar. Não fiz um trabalho de interpretação em cima delas, mas foi uma experiência interessante.
            Já com os pacientes pude observar o quanto aquele método foi restaurador. A criança que há uma suspeita de altas habilidades recebe uma carga de expectativa dos pais muito representativa e são cobradas de uma maneira distinta de outros filhos. O que aparentemente pode parecer algo muito positivo para a criança, pode ser um grande fardo, e muitas vezes, quase um “defeito”. O processo de socialização exige “comportamentos padrões”. A criança que age ou pensa diferente é vista com maus olhos pelos outros que por conseqüência, também cria seus mecanismos de defesa. Estas crianças e adolescentes tem, em geral, uma agenda semanal cheia de compromissos. Ao mesmo tempo em que é prazeroso pode ser desanimador quando não supera as expectativas intelectuais. Os níveis de inteligência são altíssimos e acima da média, mas e o lado afetivo, como fica? Grande parte dos “superdotados” tem dificuldades nas relações sociais e na expressão de suas emoções. A caixa de areia entra como um aliado nesta questão. Ali ficam evidentes os temas de cura e ferimento do processo psíquico de forma palpável, um produto do individuo, o que geralmente é muito subjetivo e abstrato no trabalho psicoterapêutico clássico.
            Sandplay é um mergulho do imaginar, uma ferramenta capaz criar uma ponte entre inconsciente e consciente restaurando os mecanismos de cura e permitindo o enfrentamento de conflitos.
Esta técnica requer uma formação específica que em breve estará disponível no Brasil. Para quem ficou curioso e quer fazer uma leitura mais profunda seguem alguns links:

Tese de mestrado orientada por Denise G. Ramos:


  • A utilização do método Sandplay no tratamento de crianças com transtorno obsessivo-compulsivo. Reinalda Matta

Psicólogas referência em Sandplay que são fantásticas:


  • O jogo de areia. Site da Psicóloga Edna G. Levy


           
           



segunda-feira, 13 de junho de 2011

FILME ANÁLISE-Cisne Negro/Araiê Prado Berger


Após a análise feita aqui no blog, que inclusive foi o post mais visitado, vou fazer a análise dele ao vivo na quarta, 15 de junho · 18:30 - 21:30

Faça sua reserva!!!!
Archés Psicologia
David Carneiro, 431
Curitiba, Brazil
(41) 3252-2421
ajuda de custo: R$ 5,00
www.arches.psc.br
arches@arches.psc.br

















terça-feira, 26 de abril de 2011

Exibição do filme-análise "Como Água para Chocolate" amanhã!



Quinta, 28 de abril · 18:30 - 21:30

O filme será exibido e após será realizado um debate orientado pela psicóloga sistêmica Marilda Costa.
ajuda de custo R$ 5,00

Clínica de Psicologia Archés - R. Davi Carneiro, 431 - São Francisco - Curitiba

(41) 3252-2421               arches@arches.psc.br

Jornada da Alma






Nova página no site "Filmes"

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Breve Comentário sobre o Livro Vermelho de Jung


Depois de um boom de posts me recolhi para mergulhar num universo maravilhoso, O Livro Vermelho. Neste post quero fazer um comentário sobre o capitulo 1 ”Líber Prímus”.
A edição é imponente, vermelho-viva, cheia de belas imagens pintadas por Jung e uma caligrafia detalhada e bem feita. Um livro que deve ser lido sobre uma mesa sem nenhum copo por perto para que, não haja nenhum risco de flagelá-lo.




Louca para fazer anotações múltiplas ao longo da leitura tive que deter e substituir o lápis ou qualquer caneta por post-it que distribuí ao longo no livro todo. A introdução é muito didática, na medida em que o autor revela a trajetória de Jung ao longo dos anos fica claro de onde vieram suas teorias: complexos, anima, inconsciente coletivo, imaginação ativa e sonhos.
No Líber Novus ou Livro vermelho fica marcada a influência na trajetória de Jung da religiosidade recebida por seu pai somado às suas experiências com transes mediúnicos e visões que obteve mais tarde.


Jung sentia-se muitas vezes à beira da loucura. Quando ele percebeu que suas visões e sonhos com catástrofes, mortes e rios de sangue estava correlacionada ao estopim da Primeira Guerra aliviou-se. Assim percebeu que nenhuma esquizofrenia o ameaçava. Era a precognição de um evento coletivo, o sonho “grande”. A indução de fantasias privadas espontâneas e experimentos coletivos foi um dos esforços de Líber Nóvus.


Jung não chega a concluí-lo para publicação, era mais um diário de bordo para suas experiências. Ele era precavido e cauteloso ao mostrar estes escritos. Havia um temor de ser “mal interpretado” o que referencio isso ao tom profético presente em suas linhas. Durante todos esses anos poucos tiveram acesso a este material, somente alguns alunos e colegas mais íntimos como Stockmayer e Jaffé que chegaram a ler, mas as primeiras cópias marcadas demoraram a ser expostas a um grupo maior. No início do Líber Primus  a linguagem não usual divida em três camadas de compreensão parece estranha inicialmente e muito metafórica mas não leva muito tempo para que o leitor mergulhe junto com ele em seus diálogos com a alma. Permaneci cinco horas sentada sobre o livro em posição desconfortável e hipnotizada. Quando o bloquinho de post-it havia acabado dei por certo fechar o livro e me deitar.


Através de seu encantamento por Nietzsche, Dante e Virgilio, Jung se inspira e se permite escrever sem pudores acadêmicos esta obra que ele chamava de diário.Sua habilidade motora fina para desenhos incrementam o texto que leio indo e voltando, do original à tradução.



No inicio há os dois capítulos do Livro Negro onde junto com “fausto” ele mergulha na sua própria escuridão e no reencontro com sua alma pela via do coração. Através da metáfora do deserto “o sol dos desejos não satisfeitos” ele perpassa pela necessidade de paciência e do conhecimento da loucura divina.
Traz à tona a figura do assassinato do herói e a necessidade de matar os deuses de dentro de si. O herói teme, pois quando ele está no inferno, ele é o inferno e toda a sua consciência pode regredir aos instintos.



 O capitulo Mysterium Encontro é maravilhoso. Através da teoria do Inconsciente Coletivo e da figura arquetípica de Elias e Salomé Jung brinca de alquimista entre os conceitos de logos e Eros trazendo a figura de conjuctio. Entre os dois conceitos encontra-se com o terceiro: as duas serpentes companheira de estrada do herói. Ela ensina sobre a adversidade incondicional da natureza dos dois princípios como um caduceu de Mercúrio.


O princípio masculino aliado ao feminino em movimento constante de transformação como uma “roda da fortuna”. Esta união dá origem ao “filho”, que é o sentido supremo, o símbolo, a passagem para uma nova criatura. O resultado do andrógino diante da criação.



Este livro provoca múltiplas sensações no leitor, se este for um amante de simbologia e mitologia torna-se um prato cheio. Eu, como leitora noturna convicta tive sonhos fantásticos. Tive até vontade de voltar a anotar todos eles, exercício que Jung indicava muito aos seus pacientes. Outro exercício interessante descrito no livro é o fechar os olhos e deixar conduzir-se pelo que se apresenta de forma literal só depois tentar significar. Nesta obra exposta após longos anos em cofres da famíia mostra como Jung se colocou como objeto de observação numa belíssima investigação do self, dos arquétipos e de onde a imaginação pode levá-lo.
            Muitos críticos falam de forma polêmica sobre esta publicação em relação a sua obra anteriormente publicada, mas vou me deter até terminar de ler o livro para melhor poder avaliar a obra como um todo.
Até o próximo capítulo!

Links interessantes sobre o livro vermelho:

No Rubicão:

Philemon Society:

 Amostra do Livro Vermelho disponibilizado pela Vozes:

Na Rubedo:

Associação Brasileira de Psicologia Analítica:
http://sbpa-rj.org.br/site/?page_id=744

segunda-feira, 28 de março de 2011

REFLEXÕES SOBRE O "SUICÍDIO E A ALMA " DE HILLMAN E O PAPEL DO ANALISTA.





Falar sobre morte já causa repulsa na maioria das pessoas, elas se esquivam fazem o sinal da cruz e batem na madeira. Segundo Sartre “a melhor pessoa para compreender a morte é a pessoa que está morta, por isso o suicídio é incompreensível, quem poderia falar não pode mais”. Mas e quando o assunto é suicídio? Esse é um tema “tabu”. Seja na televisão, na igreja, em casa ou em qualquer lugar. Ninguém quer falar sobre isso. Mas por quê? De certa forma isso fere algo na nossa estrutura mais primal: o instinto de auto preservação, manutenção da vida. Como se não pudessemos olhar diretamente para esse domínio oculto, ele em geral esta na sombra, e é um tema que por natureza sempre será difícil de ser apreendido. Ele é perigoso, desordenado e eternamente oculto, como se a luz da consciência pudesse roubar-lhe a vida.





A sociologia defende a preservação da sociedade e tem em suas tristes estatísticas a constatação da desintegração dos laços sociais, o Direito o enxerga como um crime hediondo e a Igreja nos ordena a viver. Já para os platônicos a filosofia é o ensaio da morte, a vida e a morte nascem juntas. Não podemos deixar de encarar a verdade: a morte e o único absoluto da vida, a única certeza e verdade. O único a priori humano. Para Camus o suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia.





Para Jung as idéias de morte têm significados diversos nos sonhos e nas fantasias para a psique nem é imortalidade de um fato nem é a morte um fim. A psique funciona em correspondência com a realidade objetiva. Hillman nos ensina que é preciso encarar o suicídio não apenas como uma saída da vida, mas como uma entrada na morte. O que a alma busca através das tentativas suicidas é dar novo significado à vida.


O objetivo da terapia junguiana é oportunizar uma forma de viver nosso mundo simbólico com alguém que possa iluminá-lo de uma maneira nova e diferente, fazendo conexões no espaço e no tempo. A pessoa traz para análise os sofrimentos da alma e os significados descobertos são expressões de uma realidade viva que não pode ser compreendida pela metáfora básica da Alma. Mas como o terapeuta deve lidar com isso? Segundo Hillman (1992) a questão para o analista não é saber se somos pró ou contra o suicídio, mas o que ele significa na psique. Será que o paciente conhece seu próprio mito?Nessa proposta clínica, busca-se relativizar, reinventar, desconstruir as certezas egóicas que por vezes se colocam reativas ao contato com elementos novos que pedem lugar. Tal proposição se justifica pela noção apresentada inicialmente por Jung, de que o eu seria uma criação ficcional, um complexo entre outros, que precisa de um campo de expressão na personalidade, porém além dele, há outros complexos que permanecem reprimidos ou simplesmente abaixo do nível da consciência.




Na analise desloca-se interiormente da historia de caso para a história de alma explorando os seus complexos mais por seus significados arquetípicos do que por sua historia traumática. A historia de alma é recapturada, separando-o de seus obscurecimentos pela historia de caso. Parece controverso, mas ela emerge a medida que abandonamos a historia de caso. (HILLMAN, 1992)



Hillman diz que a personalidade é um drama cheio de gente, onde nem sempre o Ego desempenha o papel de diretor. Pensar a prática clínica como aquele lugar onde deve sair a pessoa do analista e a pessoa do paciente, para que a análise possa acontecer. Às vezes, irrompem na sala as enormes figuras das tragédias. E todas elas serão figuras míticas. Segundo Jung: "Os deuses se converteram em enfermidades", quer dizer, a alma se manifesta à consciência através do patologizar. A psique está referida a um outro mundo, um sub-mundo, um destino ligado ao mundo dos mortos. Para encontrá-los basta olharmos para os complexos, reconhecendo neles o poder arquetípico dos mesmos. Somente uma parte deles pertence à esfera pessoal; a outra são os deuses que “forçam”, sintomaticamente, o ingresso à consciência. A psicologia Arquetípica se assenta sobre a imagem da depressão, a grande patologia contemporânea. Profundidade é como falamos cotidianamente desta depressão. Não se trata de curar a depressão, mas curar na depressão. Depressão no sentido geográfico, ou vale como diria Hillman. Além do diagnóstico, estilo de inconsciência. Melancolia e criatividade estão conectadas pelo menos desde Galeno. No vale da alma estão os potenciais criativos que nos possibilitam viver. No sentido intensivo da palavra. Para isso é preciso vivenciar a alma conforme seus significados, imagens emoções - o seu sentido. Enquanto o analista for fiel a psique, contudo ele não será leigo, ele tem seus fundamentos e neles há um lugar para a morte. O suicídio é uma tentativa de mudar de uma esfera para outra força através da morte. A morte aparece a fim de dar lugar à transformação. A morte vem primeiro como uma experiência da alma e depois a qual o corpo expira. Quanto mais imanente for a experiência da morte tanto maior será a possibilidade de transformação. (HILLMAN, 1992) As fantasias suicidas oferecem um encontro com a realidade. A depressão restringe e nos concentra no essencial e o suicídio é a negação final da existência em favor da essência as mutilações suicidas são distorções extremas desta forma de experiência da morte, o desejo corporal precisa morrer. O suicídio é então, o anseio por uma transformação rápida. O indivíduo quer morrer imediatamente porque já perdeu sua crise de morte antes. (HILLMAN, 1992) Quando empreendemos uma tarefa profissional, entramos em um papel arquetípico. O analista precisa descobrir sua posição, sua atitude de forma consciente e aberta, podendo assim modelar o vaso de sua vocação. Preocupar-se com a saúde da alma e não somente do corpo. Através da transferência deve confrontar-se com sua própria morte. Ele entra no papel de “arbitro do destino”, e, por isso, é imprescindível que haja uma forte aliança, para que seja possível compartilhar um mistério comum. Este é o símbolo vivo do processo de cura e expressa Eros mutante e envolvente da análise. (HILLMAN, 1992) Somos dignos de julgar o suicídio quando estamos tão cegos e surdos à nossa própria alma, que não fazemos idéia do que busca aquele que aborta a própria existência? O analista jamais deve tomar uma atitude de prevenção ele deve acompanhar a experiência tal como ela é, pois assim pode-se perder a alma. Toda vez que o tratamento negligencia diretamente a experiência, enquanto tal, e apressa-se em reduzi-la ou superá-la, algo está sendo feito contra a alma: por que a experiência é o alimento próprio e único da alma. (HILLMAN, 1992) O analista deve capturar as emoções, fantasias e imagens entrando no jogo e sonhando junto com o paciente. Conhecer uma historia de alma significa tornar-se parte do destino do outro. Apreender uma historia de alma requer insight intuitivo. O analista deve estar conectado, mas não em demasia senão os dois tornam-se inconscientes - um pé dentro e outro fora. (HILLMAN, 1992) Em suma o suicídio é uma tentativa de mudar de uma esfera para outra força através da morte. A crise suicida é uma maneira de experimentar a morte, e deve ser considerada necessária a vida da alma. (HILLMAN, 1992) Um novo começo que se inicia com a morte, e que marca o caminho para a vida, a individuação, em paralelo com o nascimento de um novo mundo. Araiê

Referências Bibliográficas:


HILLMAN, J. Suicídio e Alma. Petrópolis: Vozes, 1993.


GRANATO, L. A vida da Alma no mundo dos mortos: Mito e Metapsicologia em James Hillman Disponível no site: http://www.himma.psc.br/artigos/artigo_04_2k8.htm na data de 28/03/11.

quinta-feira, 24 de março de 2011

A BARBA NEM É TÃO AZUL ASSIM: UMA EXPERIÊNCIA NA DELEGACIA DA MULHER




Segunda feira, 08h30 da manhã e já se vê na Delegacia da Mulher de Curitiba algumas mulheres sentadas, desoladas, sorumbáticas. Outras, verborrágicas, ansiosas andam de um lado para o outro. Muitas crianças gritam no recinto. Ao mesmo tempo em que proferem sua dor há um silêncio, a mancha da violência marcando mães e filhos.
O relacionamento sonhado, idealizado, veio parar na Delegacia. O Príncipe encantado vira fera e torna-se o algoz.
Após a queima de sutiãs, o movimento feminista e a intensa informação sobre a violência contra a mulher, principalmente com o advento da Lei Maria da Penha, ainda vivemos uma época em que existem mulheres dependentes e submissas aos seus companheiros. Claro, não se pode ter a ilusão de que algo instituído há milênios iria cessar em algumas décadas de avanço. Às vezes parece algo da própria natureza do feminino que ainda se opõe à visão da mulher moderna. A posição da mulher dentro de uma família tradicionalmente é a de conservar e cuidar. Então, como ela agora deveria se revoltar e num gesto drástico entregar o marido à polícia?
A sociedade, apesar de impulsionar a mulher para o mercado de trabalho, às universidades e aos cargos de alto escalão ainda mantém a mulher atrelada ao modelo tradicional - ela deve ser “boazinha” e conservar os olhos fechados. Até pouco tempo o homem detinha total propriedade sobre a mulher. O casamento tradicional na Igreja Católica é um rito patriarcal. O pai, proprietário e guardião da pureza da filha, a entrega formalmente a outro homem que lhe dá seu nome.
A mulher, no papel de ingênua, deve sempre ter um herói ao lado pronto para salvá-la. Não é assim que acontece nos filmes de ação? Apesar da intuição e do instinto de preservação inatos as mulheres se envolvem em relacionamentos potencialmente perigosos; o fio de Ariadne torna-se um novelo de lã emaranhado e ela não enxerga a saída do labirinto. Heróis de um cenário cor-de-rosa transformam o sonho em pesadelo personificando então o homem sinistro, de amante a predador.


A junguiana Clarissa Pinkola Estés com livro Mulheres que Correm com os Lobos(1992) busca o resgate do lado instintivo da mulher expondo a psique feminina de forma arquetípica por meio de antigos contos. Ela inicia com a famosa história do Barba Azul, de Charles Perrault, que conta sobre um rico e temido aristocrata, dono de uma assustadora barba que de tão negra chegava a azular. Como um conto do século XVII pode ainda ser perfeitamente aplicado nos dias atuais? O homem sinistro nos sonhos das mulheres é inato e pode se materializar no papel de maridos, namorados e conviventes. “O Barba Azul simboliza um complexo profundamente recluso que fica espreitando as margens da vida da mulher, observando, à espera de uma oportunidade para atacar” (ESTES, 1992).



Pergunta-se às mulheres atendidas na delegacia: Vocês sabiam quem era este homem antes de entregar-se a ele? A maioria esmagadora diz sim. No conto a esposa do Barba Azul é a irmã mais nova, símbolo da ingenuidade feminina, ”essa aceitação do casamento com o monstro é na realidade decidida quando as meninas são muito novas, elas são ensinadas a não enxergar e, em vez disso, a "dourar" todo tipo de esquisitice, quer seja agradável quer não.” (ESTES, 1992).
Ela inicialmente não gosta do Barba Azul e fareja o perigo mas é seduzida pelos seus encantos e diz às irmãs mais velhas: "Bem, até que a barba dele não é tão azul assim" e ignorando sua intuição deixa que ele a despose. A maioria das mulheres, como já foi dito, sabe da natureza terrível de seus companheiros, mas se mantém cegas e na esperança de que “um dia ele vai mudar”.


Um dia Barba Azul resolve viajar e avisa sua esposa. Oferece todos os luxos de seu castelo e todas as suas chaves, desde que ela se mantenha obediente: havia uma pequena chave de acesso a um dos quartos que ela jamais poderia usar. A ilusão da liberdade. Segundo Estes (1992) “proibir uma mulher de usar a chave que leva à consciência é o mesmo que lhe arrancar a Mulher Selvagem, seu instinto natural de curiosidade e sua descoberta do que se esconde por baixo.”
Ela deseja conhecer a verdadeira natureza deste homem. Trazer luz a este quarto escuro e desconhecido de sua consciência. Afinal, o que está por trás da porta?



Apesar das mulheres saberem exatamente quem são seus companheiros neste momento ainda estão cegas pela ingenuidade ou por haver soterrado sua intuição. Mas há algo dentro delas gritando: a necessidade de farejar. Isso significa lançar mão de suas capacidades e usar a chave. Era nesse verdadeiro quarto dos horrores que Barba Azul escondia os cadáveres esquartejados das sucessivas mulheres com quem se casara, mas que invariavelmente assassinara. Ela desvela esse homem “e descobre a horrenda carnificina em algum ponto da sua vida profunda”. Essa descoberta suscita na mulher duas reações diferentes: o medo de ir embora e o medo de ficar. Quando elas desvelam a natureza terrível de seus companheiros tentam por diversas vezes negar o fato, mas sua energia vital continua se esvaindo e isso pode facilmente levá-las a morte. No momento em que a esposa do Barba Azul abre a porta do quarto secreto e encontra os cadáveres das antigas esposas, no susto acaba derrubando a chave.



E essa chave, esse minúsculo símbolo da vida, de repente não pára de sangrar, não pára de soltar o grito de que há algo de errado. Uma mulher pode tentar se esconder para não ver as devastações da sua vida, mas o sangramento, a perda da energia da vida, continuará até que ela reconheça a real natureza do predador e o domine (ESTES, 1992).
As mulheres tentam “apagar”, “limpar” esse conhecimento, mas depois de aberta a porta não é possível retornar. Não se pode mais apagar a luz, ela deixou de ser ingênua. Ela já conhece o caráter terrível do homem e o seu poder destrutivo e, por mais que tente retornar a cegueira e à esperança que um dia ele irá mudar, há algo aceso dentro dela que não se apaga facilmente. Ela dever agir em prol de sua própria vida. Muitas mulheres neste momento se encontram desvitalizadas e com uma nítida sensação de que não há saída, estão presas dentro de si mesmas, hipnose. Elas se acostumam com o terror diário de sua relação. Este perfil do “agressor” é muito marcado. São homens em geral possessivos, ciumentos e controladores. Usam a força física para diferenciar o homem (forte) da mulher (frágil). A coerção e o jogo de poder estão muito presentes e muitas mulheres com seu instinto de conservar e cuidar da família acabam se mantendo atrelada a estes homens.
A personagem do noivo animal é um marco na psique, representando algo perverso disfarçado como algo benévolo. Essa caracterização ou algo dela aproximado está sempre presente quando uma mulher nutre pressentimentos ingênuos acerca de alguma coisa ou de alguém. Quando uma mulher tenta ignorar os fatos das suas próprias devastações, seus sonhos noturnos gritarão avisos para ela, avisos e exortações para acordar! Pedir ajuda! Fugir! Ou dar o golpe final! (ESTES, 1992)
A tendência das mulheres de tentar “limpar a chave” e esconder a descoberta terrível de si mesmas é muito relevante dentro da realidade da Delegacia da Mulher. Fazem o Boletim de Ocorrência e depois se arrependem, voltam atrás na decisão de abrir o Inquérito Policial contra seus companheiros. Tentam desesperadamente apagar aquele fato, mas “agora o self ingênuo tem conhecimento de uma força assassina solta dentro da psique. Trata-se, porém, de algo muito mais sério, pois o sangue representa o extermínio dos aspectos mais profundos e íntimos da vida criativa e da alma. Ele não mancha só a chave; ele escorre pela persona inteira” (ESTES, 1992).
A culpa é tão estarrecedora e profunda. Ela devia ter obedecido. Agora a situação estava fora de controle. A mulher agredida se acusa de ser a principal responsável pela agressão que está sofrendo, e dessa forma, consegue incutir em seu psicológico uma culpa muito grande. “Na maioria dos casos, a mulher sente que, se apenas se mantiver fiel ao velho modelo um pouco mais, ora, sem dúvida a sensação paradisíaca que procura aparecerá no próximo batimento do seu coração” (ESTES 1992).


Quando a mulher percebe que caiu numa armadilha e que não poderá voltar atrás ela mal consegue tolerar a situação. Ela inclusive se culpa pela descoberta feita e sabe que feriu a um preceito básico: ela deveria ser obediente e boazinha e por isso merece sofrer, ou no caso do Conto de Perrault, morrer. Depois de superar diversos medos internos e externos a mulher que consegue chegar até uma delegacia supera mais uma barreira: o silêncio, o medo de falar sobre a violência e dificuldade de admitir o fracasso no sonho cor-de-rosa idealizado.
Quando Barba Azul retorna da viagem e percebe que a esposa violou seu quarto secreto decreta que ela deve morrer.



A esposa, já estratégica, pede um tempo para rezar e ele permite. Ali ela convoca seu feminino selvagem, instintivo e sem amarras. Um momento de reflexão para digerir e pensar em como agir. Este tempo estratégico é utilizado pelo setor de psicologia dentro da Delegacia: após o boletim de ocorrência ela aguarda em média duas semanas e participa de um grupo para saber se irá ou não representar contra seu suposto agressor. Neste momento ela reúne todas as suas forças para pensar racionalmente em qual a melhor decisão a se tomada.

Muitas das decisões são pautadas no medo. Segundo estatísticas da Delegacia da Mulher 60% das mulheres que fazem boletins de ocorrência estão na faixa de 31-50 anos e 83% já sofreram violência anteriormente. Este dado é extremamente relevante, pois nota-se o quanto estas mulheres demoram a procurar ajuda e o quanto ainda estão inertes e cegas diante das agressões seus companheiros. Após a agressão aceitam suas desculpas, como que “recuperando” aquela ingenuidade inicial fazendo com que o ciclo da violência se mantenha. Mas em algum momento, como já foi dito acima, a atitude torna-se imperiosa, sua vida está correndo risco. Hoje os índices de representação criminal estão acima da média (61%), o que nos leva a concluir que uma parte das mulheres estão em busca dos seus direitos. Mas, como dar o grito?
A mulher convoca seus irmãos psíquicos. Eles são os propulsores mais musculosos, os elementos de natureza mais agressiva da psique - seu animus. São a força interior à mulher que sabe agir quando chega a hora de matar. A primeira consiste na neutralização na psique da mulher da enorme capacidade paralisante do predador. A segunda é a substituição da virgem de olhos vidrados por uma de olhos vigilantes, com um guerreiro de cada lado se ela precisar convocá-los. (ESTES, 1992)
Essa personificação do animus está ligada a capacidade da mulher de não ser mais boazinha e neutralizar o predador. Na prática simboliza a denúncia. Seja para a Polícia Militar em sua própria residência ou após o fato na própria delegacia da mulher. Esse animus agora desperto faz com que ela saia da posição de vítima.


Hoje, com o advento da Lei Maria da Penha, há uma lei pesada que encarcera o agressor. E faz com que as mulheres fiquem numa posição muito ambivalentes: representar ou não representar? Mesmo com a ameaça à vida elas não desejam “matar” esse companheiro, nem prendê-lo. E está é a ultima tarefa da mulher: “a de permitir que sua natureza de vida-morte-vida desmanche o predador e o leve embora para ser incubado, transformado e devolvido à vida”. (ESTES, 1992)


No conto ela consegue matar o Barba Azul, mas como as coisas acontecem na realidade? Muitas mulheres, assim como nossa protagonista, conseguem se desvencilhar desta armadilha. Muitas delas entram num estado de torpor e sabem que se que "se ficar o bicho pega, se correr o bicho come”. Se ela não escapar, o homem sinistro se transforma em seu carcereiro e ela, em sua escrava. Se ela conseguir escapar, ele a perseguirá sem trégua, como se fosse seu dono. “As mulheres temem que o homem sinistro as encurrale para forçá-las novamente à submissão”. (ESTES, 1992)
Infelizmente os índices de mulheres agredidas por seus companheiros são muito altos após a tentativa de separação. A citação de Estes é o retrato do sentimento destas mulheres quando resolvem fazer uma denúncia. Elas temem a sua fúria sanguinária, mas dividem-se entre o medo de ir e o medo de ficar.
Hoje os inquéritos policiais são abandonados e retirados, pois muitas mulheres são coagidas e seduzidas por seus companheiros a manter-se no papel de vítima, de ingênua, de boazinha. Ilusoriamente elas tentam se enganar novamente “mas a barba dele nem é tão azul assim” minimizando a violência sofrida.
A cura só pode vir com a aceitação da consciência já adquirida “veja o que estiver vendo; ouça o que estiver ouvindo” (ESTES, 1992). Use a chave.



A Mulher Selvagem ensina às mulheres quando não se deve ser "boazinha" no que diz respeito à proteção da expressão de nossa alma. A natureza selvagem sabe que a "doçura" nessas ocasiões só faz com que o predador sorria. Quando a expressão da alma está sendo ameaçada, não é só aceitável fixar um limite e ser fiel a ele; é imprescindível. Quando a mulher age assim, não poderá haver intromissões na sua vida por muito tempo, pois ela reconhece logo o que está errado e tem condições de empurrar o predador de volta ao seu devido lugar. Ela já não é mais ingênua. Ela já não é mais uma meta ou um alvo. E é esse o antídoto mágico que afinal faz com que a chave pare de sangrar (ESTES, 1992).
A mulher “reconstituída” de uma relação-problema em que houve agressões sistemáticas cria uma aversão natural pelo relacionamento amoroso, pela possibilidade de um novo parceiro, sonho frustrado. A imagem do masculino fica maculada. Como curar essa imagem? Como confiar em alguém com os instintos tão testosteronizados? A cura deve ser completa: feminino e masculino. No conto a irmã mais nova casa-se novamente e herda toda a fortuna de seu terrível marido. Um final feliz, de integração, conjunctio. Mas o ciclo da violência só se desfaz quando a mulher consegue matar esse predador dentro dela, sem reincidências. Ela não tem mais “vista fraca”. O conto é a própria elaboração desse despertar, desse “enxergar o mundo”.


No caso dela manter esse homem ao seu lado necessitará ter na ponta da língua As Mil e uma Noites de Xerazade, para manter-se viva, noite após noite. Segundo Estes (1992):
Talvez o mais importante seja o fato de a história do Barba-azul trazer ao nível do consciente a chave psíquica, a capacidade de fazer qualquer pergunta a respeito de nós mesmos, da nossa família, dos nossos projetos e da vida como um todo. Depois, como um ser selvagem que tudo fareja, que cheira em volta, debaixo e dentro para descobrir o que uma coisa é, a mulher está livre para encontrar respostas verdadeiras para suas perguntas mais profundas e mais sombrias. Ela está livre para arrancar os poderes daquilo que a assolou e para voltar esses poderes, que antes foram empregados contra ela, para os excelentes usos que lhe forem mais convenientes. Assim é a mulher selvagem. (ESTES, 1992).
Esta é a saída, mas como fazer com que uma mulher recupere essa energia, vitalidade e ímpeto que lhe havia sido roubado? Ao contrário da esposa do Barba Azul há algumas mulheres que nunca ousam abrir a porta, permanecem cegas apesar de farejar o perigo. Ser livre é abrir mão do sonho de uma família, de um casamento e de um projeto de vida - até a violência é uma forma de relação. Mas em toda escolha há ganhos e perdas. Representar ou não representar? Eis a questão. Muitas mulheres desistem no meio do caminho e ressuscitam o Barba Azul em sua psique, mesmo sabendo que a denúncia é a única forma de conter a violência e desconhecem a gravidade do risco, seja emocionais ou físicos.
Há duas saídas para o ciclo da violência. Na primeira fase em que, apesar de ingênua fareja o perigo sob a forma de ameaças. Na segunda, diante da própria agressão desvela o segredo do predador e o denuncia. Na terceira fase do pedido de desculpas, da lua de mel em que ela pode revelar (velar novamente) o Manto de Isis, como um segredo, uma cegueira ou seguir seus instintos tornando-se dona seu próprio caminho, sua individuação. E quem sabe encontrar subterfúgios para um novo começo.



Araiê




REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ESTÉS, C., P. Mulheres que correm com os lobos. Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1992.